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sábado, 2 de janeiro de 2010

O RELÓGIO DIGITAL




Mais uma vez a crônica de Jostein Gaarder nos remete a reflexão. O tempo não é cíclico, mas cada momento é único e jamais será repetido...Vale a pena ler e pensar! (Alexandre Brandão)


O RELÓGIO DIGITAL

Agora eu também comprei um relógio digital para mim. Com horas, minutos, segundos e dezenas de segundos. Com contagem de anos, meses e dias da semana. Despertador, parquímetro e cronômetro {duas melodias: “Pour Elise” ou “Love story”). Horário alternativo, formato de exibição de doze e vinte e quatro horas. Com luz de fundo. Ao todo, doze funções.
E por tudo isso paguei noventa e oito coroas. Foi uma promoção, é claro. Uma verdadeira pechincha. E mesmo assim ando tendo algumas dúvidas. Eu me sinto enganado.
Minha vida não é mais o que era antes. A começar pela palavra “digital”. Fria como metal.
Antigamente, quando os relógios simplesmente andavam em círculo, tudo era diferente. Não havia começo nem fim. A vida era um eterno carrossel. Depois veio a janelinha para a data, depois para o dia da semana... mas ainda assim perdurava uma harmonia cíclica. Eu só tinha que dar corda em meu relógio a cada dois dias.
Agora carrego todo o resto da minha vida no meu pulso. Cada segundo e dezena de segundo já estão ali programados. Até mesmo os anos bissextos meu relógio digital leva em conta. Ele está pré-programado até o ano 2050. Eu vou estar com noventa e oito anos — ou não vou estar mais aqui.
Com meu relógio digital no pulso, olho demais para as horas, aquele segundo que inexoravelmente se transforma no próximo.
Vejo um ponto de luz intermitente diante de mim que não deixa uma linha atrás de si. Vejo um pássaro diante de mim que bate as asas num vôo selvagem pelo horizonte sem deixar um rastro. Penso no paradoxo eleático: uma linha é uma abstração. Na verdade, é a soma de um número infinito de pontos. E assim é com o tempo. Assim, naturalmente, também é com tudo, eu penso. Não existe traço que dure para sempre.
EU SOU testemunha de um processo impiedoso. O relógio nunca mais poderá ser como ontem. Nunca mais será 22hl5min36s de sábado, 8 de fevereiro de 1985.
O ciclo foi interrompido. O tempo das recorrências já se foi.
Observo meu pulso. Ele parece um formigueiro. Apenas o formigueiro propriamente dito está quieto, no mais reina um frenético tumulto. As horas e os minutos de alguma maneira talvez ainda sejam sólidos. }á os segundos e dezenas de segundos me lembram de átomos e moléculas.
Quantos segundos ainda tenho de vida? Quantas dezenas de segundos?
Antes eu já tive relógio. Mas este relógio aqui me rouba o tempo. Diante dos meus próprios olhos. E ninguém faz nada. O relógio digital é uma alusão permanente ao fato de que todas as formas são fluidas. Uma cordilheira é uma cascata. Uma galáxia é uma labareda serpenteante. A alma do mundo é tão inconstante como uma nuvem de fumaça. Tudo é apenas uma questão de precisão do instrumento.
Não consigo me acostumar a ti, meu companheiro de caminhada que levo em meu pulso. Tua verdade é brutal. Cospes os segundos como balas de uma metralhadora. E teu arsenal é suficiente para te servir, leviano Nada.
Teus números são os números de mortos. Teu pulsar é frio como a foice.

(GAARDER, Jostein. O Pássaro Raro. São Paulo, SP, Cia das Letras, 2002.)
- Autor de O Mundo de Sofia.




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