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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Entrevista com Eduardo Galeano


Eduardo Galeano


Eduardo Galeano: Veias continuam abertas na América Latina


Entrevista concedida os jornalistas Mário Augusto Jakobskind, Maria Luiza Franco e Claudia de Abreu.


“As veias abertas na América Latina” estão mais abertas ainda do que há 37 anos atrás quando você escreveu esse trabalho, ou não, o que mudou?
Galeano: Estive há pouco tempo, duas semanas, em Buenos Aires, parte da minha família está lá, eu estava caminhando, feliz, quando encontrei o Conde Drácula, tinha chegado da Transilvânia, estava recém chegado e eu achei ele estragadíssimo, não o reconheci. Mais morto do que vivo. Olhando o chão, caminhando com dificuldade, acabado o coitado do Conde Drácula. Aí perguntei para ele: o que acontece com você, Conde?. E respondeu: olha, estou aqui.., fazendo o quê?, procurando um psicanalista. Dizem que aqui tem os melhores do mundo, olha, não sei se tem os melhores, mas tem muitos. Qualquer casa dessa, cada campainha tem um psicanalista. Mas para que você precisa de um psicanalista, Conde Drácula? - Eu tenho complexo de inferioridade incurável, mas vou tentar com ele, se alguém pode me salvar - Complexo de inferioridade por que, Conde? - Porque eu vejo como é que agem hoje as grandes corporações multinacionais, esses sim que são autênticos sanguessugas, isso eu fico... sei lá, achando que tem uma crise de identidade, de auto-estima.


Agora, você percebe que as veias estão mais do que escancaradas na América Latina, você percebe que essa realidade é uma realidade que extrapola a América Latina? Essa realidade de que cada vez mais a América Latina está arrombada por essas empresas, por essas corporações, isso é um problema hoje que está percorrendo o mundo inteiro, ou está especificamente na América Latina?
Galeano: Não, é universal. Só que esse mundo que diz que é democrático, não é muito democrático; ele esconde diferenças que vão crescendo a cada dia, ano atrás ano, o norte e o sul. Mas que se abre com uma tesoura, vai abrindo, abrindo, a distância dos que têm e dos que precisam. Os que precisam são cada vez mais; os que têm, cada vez menos. E essa é a organização mundial. (risos) Não é um privilégio da América Latina ter essas injustiças terríveis. O mundo é muito injusto, é muito pouco democrático.


Você acha que precisa se discutir a democracia?
Galeano: Democracia é um tema possível; no mundo de hoje se fala o tempo todo em democracia. O mundo democrático... Democrático não é; se é, eu tenho as minhas dúvidas. Veja você, tem esse super governo agora agindo no mundo. Perdão. Os governos latino-americanos continuam sendo governos governados. Governados pelos super-governos que estão aí agindo internacionalmente. Todos têm nomes, internacional, mundial. Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, o que não expressa o conjunto de países. As decisões são tomadas por cinco países, sobretudo por um, que tem direito de veto.


Em relação às veias abertas, queria lembrar a questão do petróleo e a diferença de tratamento entre os governantes da América Latina. Por exemplo, o Chaves e o Morales usando o petróleo em defesa da soberania de seus países, e aqui no Brasil a gente tem leilão de petróleo. Queria que você comentasse um pouco isso.
Galeano: A idéia é que... eu lembro que neste país, o Brasil, aquele grito “o petróleo é nosso” virou um lema nacional lindíssimo, de afirmação nacional, de dignidade em defesa dos recursos naturais do país. Foi o símbolo do nacionalismo brasileiro. Entendi no sentido positivo da palavra nacionalismo, como afirmação de dignidade de fato. Agora, quando esse mesmo exercício de dignidade nacional está vivo na Bolívia, por exemplo, o Brasil deveria aplaudir. Em parte, o exemplo brasileiro está sendo seguido por outros países vizinhos. Em vez de se escandalizar, ou achar que os bolivianos estão agindo contra a Petrobras, e não sei o quê, o Brasil deveria aplaudir, dizer: “muito bem, vocês estão bem, estão aprendendo a dura lição da história.


Mais do que refúgio, você não acha que a literatura pode ser um meio de transformação coletiva?
Galeano: Também. Eu acho que sim, que pode, na medida que a palavra seja capaz de continuar viva naquele que a recebe. Quer dizer, que se transforme. O leitor perfeito para mim. O meu grande amigo que foi Júlio Cortazar falava do leitor passivo, e eu nunca concordei com ele. O leitor é o leitor ativo, que recebe. São palavras que depois ficam sendo diferentes porque vão se transformando dentro do leitor. Então o leitor, a partir dos livros, um texto qualquer, aquela coisa trabalha dentro dele, vai alimentando a sua imaginação, a sua consciência, a sua capacidade de alegria e de dor também, de pensar, de sentir. Eu acho que sim, que a palavra pode ter um certo poder transformador. Não vai mudar o mundo, mas sempre tem influência grande. Os grandes livros de maior influência no mundo estão aí para demonstrar que a palavra não é inútil. A Bíblia, o Alcorão, O Capital, sei lá quantos.


Qual você acha que é o papel do intelectual hoje, na América Latina?
Galeano: Não sei. Eu nunca contesto esse tipo de programa porque quem sou eu para decidir o papel do intelectual. Eu só sei o que eu sei. Sempre que eu estou habitando uma realidade maravilhosa e horrorosa, que merece ser contagiada, que merece ser transmitida, comunicada. Você precisa chegar mais lá, no passado, no presente. Passado também, história real e uma história mentida, uma história que não está assim visível. A história oficial é uma coleção de mentiras, onde há heróis dizendo grandes frases que não são a verdade dos tempos passados. Por quê? Porque a palavra que vale a pena escutar é a palavra dos desprezados. Tenho muitos bons amigos, intelectuais, que têm uma certa tendência a acreditar que o povo é mudo. Não se fala daquele que não tem voz. Voz temos todos. Todos temos alguma coisa digna que merece ser oferecida aos outros. Alguma palavra que mereça ser dita, alguma palavra que mereça ser escutada, celebrada ou ao menos perdoada. Então o problema é saber escutar para saber falar. Sempre digo, é condição essencial escutar as vozes, as vozes jamais escutadas. São as vozes verdadeiras. Aí você soma o passado latino-americano, ditado pelos machos, pelos brancos, pelos militares, e pela elite dominante. 5, 10, 50 pessoas. Então, a realidade de verdade é para mim uma fonte de tentação contínua. Que boa coisa para ser contatada..., que boa energia para ser comunicada, e a que vem dos outros, não escutados, das mulheres, dos negros, dos índios, dos pobres, dos civis. Daqueles que não estão, que não figuram aí. Nós pertencemos a nações que nasceram mutiladas. Então, elas têm uma cultura passada, literatura, que também está mutilada. Tenho a modesta intenção de contribuir na recuperação dessas vozes perdidas.


Outra questão que a gente sempre discute, nós jornalistas e escritores, no mundo da comunicação: como você vê hoje a mídia na América Latina, essa, que tem até a sigla, Sociedade Interamericana de Imprensa, a todo momento fala que defende a liberdade de imprensa, etc e tal, como você vê esse quadro atual?
Galeano: Sim, uma coisa é liberdade de imprensa, uma outra é liberdade de empresa. Uma coisa é liberdade de expressão e a outra diferente, às vezes até inimiga da liberdade de expressão, é a liberdade de pressão. Essa liberdade de pressão é exercida pelas grandes empresas dominantes nos meios de comunicação. Aí é preciso descobrir qual é a verdade das mentiras que cotidianamente recebe. Como aquele general mexicano, Serrano, lá pelos anos 20, ele lia o jornal ao avesso. O presidente da época, viu ele lendo o jornal ao avesso e disse: Mas general, como é que você lê o jornal assim, ao avesso, sempre?. E o militar respondeu: sempre. Como assim? Por quê? - Resposta: por experiência, por experiência.


E como fazer o controle social da mídia sem fazer censura, por exemplo? Porque é isso que os empresários falam, todo e qualquer controle, qualquer reivindicação da sociedade é tratada como se fosse um problema de censura, que querem censurar determinadas coisas, como não cair nisso?
Galeano: O controle é necessário hoje, mais do que nunca é necessário ampliar os espaços de comunicação alternativos. Na verdade, por exemplo, o desenvolvimento da Internet penso que foi muito positivo, porque permitiu que algumas vozes condenadas ao silêncio perpétuo pudessem ser escutadas além dos limites mesquinhos da mídia dominante. Eu tinha preconceitos contra internet, devo admitir isso. Mas agora estou reconhecendo.


Se adaptou...
Galeano:
Não. Eu não me adaptei a nada, mas eu reconheci, eu acho que a realidade... A coisa está em ser capaz de ver as coisas como são, e não como a gente acha que são. Aquela deformação típica que diz: se a realidade não é como eu acho que é, então ela não me merece. Ela que tem que mudar para se adaptar a minha visão dela. Então essa não é minha maneira de ver as coisas. Eu tinha preconceitos contra a internet, depois eu estive vendo que a internet abriu espaços muito importantes, e isso é uma fonte de esperança no mundo de hoje, porque a internet nasceu sendo um instrumento militar, um instrumento de morte. E foi criada na Universidade de Berckley, na Califórnia, mas ao serviço das necessidades do Pentágono na planificação universal da morte, das atividades de guerra militar. E virou uma coisa muito diferente, que abre espaço de vida importantíssimo. É um paradoxo que eu acho que é uma fonte de esperança. Nem tudo vai sendo pior do que era. Tem coisas que às vezes a gente tinha, como no meu caso, preconceito e são preconceitos da minha natural anárquica resistência às máquinas. Porque eu acho que máquinas, o computador, televisor, todas as máquinas bebem de noite, quando ninguém está vendo, aí elas bebem e depois durante o dia fazem coisas inexplicáveis. Disso eu tenho provas científicas...


Você falou da Internet. Você acha que caberia hoje a edição de jornais impressos de esquerda que façam frente a esse discurso repetitivo que está todo dia nas bancas, e que na verdade tem formado esse leitor, esse cidadão, você acha que cabe um jornal?
Galeano: Agora a influência dos jornais é muito menor do que era há 20 anos, 30 anos. Tem mais influência, eu acho, a televisão, do que a imprensa escrita, na hora de decidir qual seria o meio melhor para ampliar o público, para redescobrir o arco-íris, todas essas coisas maravilhosas que estão aí esperando para ser despertadas. E tem esses meios alternativos novos, como a televisão comunitária. Eu acho que esse é um dos meios melhores, mais importantes para que o povo possa se expressar, para que a expressão venha de onde deve vir, de dentro, de baixo, não de cima, de fora. Essas pressões que vêm de cima e de fora são partes de uma alienação cultural que acha que tudo aquilo de importado vale. Tudo aquilo que é nosso, mas é qualquer, não vale nada, é um lixo. Então eu acho que o desenvolvimento das rádios comunitárias, das televisões comunitárias e dos espaços alternativos na rede de internet, as boas notícias no mundo que apareceram nesses 15, 20 anos, com muita força, é uma fonte de esperança de dizer: Não estamos condenados a ver a nós mesmos com os olhos daquele que nos despreza, que nos explora, que nos humilha. Eu dirigi em Buenos Aires, nos primeiros tempos do meu exílio, uma revista cultural que se chamava Crisis. Foi uma experiência interessantíssima porque a tradição, ao menos no mundo da língua espanhola, ensinava que uma revista cultural não pode vender mais que 500 mil exemplares. Pode sem, em caso excepcionalíssimo, que você coloca uma mulher nua na capa e consegue vender 2 mil. E nós chegamos a vender 25 mil. O que era incrível. E a chave do sucesso dessa publicação na Argentina, uma publicação que expressava a cultura latino-americana viva, e que não só era um meio de difusão das palavras dos artistas, dos poetas, dos escritores, mas era também um meio de comunicação direto. Nós pegávamos a palavra, procurávamos como que a gente se expressava. Até nos grafites e nas paredes, que são a imprensa dos pobres, também uma maneira de expressão. Escutar a voz, escutar, para ser capaz de falar; primeiro, escutar...


Agora, você não vai discordar que nós, a sociedade brasileira, a sociedade latino-americana basicamente é áudio-visual. Então nesse sentido, além do jornal impresso, deve-se destacar a importância de se ocupar o espaço nos veículos eletrônicos. O sistema digital, por exemplo, que pode ser uma revolução na comunicação com a multiplicação do número de canais de rádio, tv, só que as decisões estão sendo tomadas no sentido oposto. E no Uruguai também está se discutindo isso hoje?
Galeano: Não, está se tentando ampliar a comunicação, nós estamos ainda muito ligados a opiniões tradicionais. Eu trabalho junto com o Zibechi, escrevendo, publicando. Mas o que eu acho necessário é que fique claro que uma coisa são os meios e outra coisa os fins. O que é desejável é que em nossos fins fossem encontrados meios adequados para se expressar e chegar a maior quantidade de pessoas. Mas que nenhum meio de expressão está por cima dos outros. Nenhum meio é melhor do que os outros. Depende do momento e do lugar. E eu digo isso confessando que eu sou absolutamente pré-histórico. Eu escrevo à mão, eu não sei conduzir um carro, eu sou um desastre. Tenho essa desconfiança com as máquinas, sou completamente inútil. Para mim é um milagre divino quando puxo um botão e a luz do quarto se acende. Eu sou um desastre, um paleolítico. O que eu não posso é transmitir essa limitações aos demais como se fossem uma certeza absoluta, dizendo: olha, a única boa forma de expressão é a minha, que é a escrita. O único meio possível de respostas a esse monopólio da informação e da opinião, dos grandes fabricantes universais da opinião e da informação é um novo jornal, ou um jornal alternativo, não quero fazer isso. Eu quero ter a maior amplitude possível.


Você é um escritor, não pode ter certeza.
Galeano: Não, não, porque as dúvidas... Eu desconfio muito dos que têm só certeza. Eu só acredito nas certezas que nascem das dúvidas. Quer dizer, as certezas que cada manhã, junto com o cafezinho, recebem, se alimentam das dúvidas. Então tenho certeza que são certezas certíssimas às 8 da manhã, 10; à 1 da tarde eu acho que não acredito muito nisso, não, mas às 3 me recupero. Eu estou continuamente desafiado pelas minhas dúvidas. E tenho uma desconfiança dos caras que só têm certezas, certezas absolutas. Porque esses caras depois, um dia, chegam ao poder e fuzilam meia humanidade, sobre aquele que não comparte da certeza dele, passa a ser um pecador. Vai para o fogo.(risos)


Eduardo Galeano, há 5 anos houve o atentado do World Trade Center, como você está vendo, hoje, o mundo com Bush, esse mundo e nossa América Latina? Se nós corremos realmente perigo de continuar nesse estado de coisa; e outra questão, Oriente Médio... tivemos aí nesse confronto entre um estado e uma milícia armada, e quando se critica o Estado de Israel, você inclusive foi signatário do manifesto denunciando as atrocidades israelenses no Líbano, e todo crítico é chamado de anti-semita. Como você vê...?
Galeano: Do meu ponto de vista, o pior atentado que o mundo sofreu nesses últimos anos não foi a derrubada das torres gêmeas em Nova Iorque, mas a idéia da guerra no Iraque. Uma guerra que já matou, segundo as estatísticas oficiais, 50 mil civis. A maioria deles mulheres e crianças. Esse foi e continua sendo o pior atentado terrorista. O terrorismo de estado é muito mais perigoso do que o terrorismo do maluco privado; aquele fanático religioso promove um dano minúsculo comparado com a estrutura do poder terrorista do mundo. Esse é um mundo, que não é só um manicômio, é também um matadouro. Cada dia esse mundo está gastando 2 bilhões e 500 milhões de dólares na indústria da morte. Ou seja, na indústria militar. Então o mundo é um mundo terrorista. Os donos do mundo estão exercendo o terrorismo. E precisamos desses outros terroristas como Bin Laden, que são caras fabricados por eles para justificar a existência dessa estrutura internacional de poder consagrada à morte.


[Texto publicado na versão impressa de Poiésis - Literatura, Pensamento & Arte, nº 130, janeiro de 2007, pág. 6 e 7]

Fonte: www.jornalpoiesis.com


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