História e Bíblia

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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

SANTIFICAÇÃO


SANTIFICAÇÃO: CONSTANTE QUEBRA DE PARADIGMAS!
( Caio Fabio)

Jeremias diz que se um negro da Etiópia conseguir ficar branco por si mesmo, ou se um europeu conseguir ficar preto de si mesmo, ou se um tigre conseguir arrancar as suas manchas — então, estando o homem acostumado a fazer o mal, conseguirá fazer o bem [13:23].

Ou seja: o arraigar do hábito é feito de costume, de rotina, de repetição, de condicionamento espiritual, psicológico e neural; o qual altera o espírito, passa a designar as pulsões da alma, e, também, molda o cérebro, mexendo assim por completo na constituição do homem.

Assim o homem é aquilo a que se habitua, se acostuma; pois, no costume, cabe tudo; até mesmo a dor sentida como necessidade espiritual, psicológica e cerebral; posto que pela rotina e repetição perversa, novas constituições se desenvolvem na pessoa, a ponto de alterá-la muitas vezes para sempre.

Temos uma constituição natural dada à competição, à conquista, à supremacia, e, sobretudo, aos sentimentos da guerra e do enfrentamento.

Coisas do “mamífero sofisticado” pelo egoísmo que transcende a necessidade.

Some-se a isto o caldo cultural e sua acumulação de camadas e camadas de história viciada em nome da cultura ou do “nosso modo de ser”, ou de nosso “way of life”.

E, além disso, adicione o curso deste mundo, com seu volume extraordinário de indução, sugestão e tirania.

Ainda mais que isto:

Adicione também a percepção de que tudo isto origina arquétipos coletivos que são “comidos” pelos Principados e Potestades espirituais, e, por eles, a nós devolvidos de maneira agigantada, para serem por nós incorporados à cultura, e, por meio dela, transmitidos a novas gerações que, por sua vez, superlativizarão o caldo que lhes for contemporâneo e, acima dele, adicionarão novas camadas às já existentes, tornando o processo sempre e constantemente piorado, até quando melhora em alguns tópicos.

Ora, isto feito, nós temos uma macro-visão dos poderes que influenciam os nossos hábitos e costumes.

No entanto, tais macro-realidades se efetuam em nossas existências mais eficazmente através das alterações que os maus costumes produzem na herança genética — maus hábitos familiares podem mudar até os genes, pela repetição, geração após geração —, as quais a cultura estabelece como modelos de ser para a família e para o individuo.

É por isto que Jeremias nos diz que se o costume for o de fazer o mal, então, o fazer o bem será uma façanha tão grande quanto auto-determinar a cor da pele ou possuir a capacidade que o tigre não tem de tirar de si mesmo as próprias manchas características.

Ora, Jesus, no entanto, dedicou-se aos que eram justamente os imutáveis de Seus dias e à Sua volta.

Sim! Ele julgou que o mau costume dos publicanos e pecadores comuns era ainda muito mais maleável do que o mau costume dos religiosos, os quais, pela repetição constante do mesmo padrão, séculos afora, eram agora os seres fixos na maldade, visto que eles carregavam os genes  e a cultura [“nossos pais”] dos que mataram todos os profetas antes deles.

Quando Paulo nos apresenta o seu pedigree judaico, mostrando-nos a genuinidade genética, religiosa, cultural e espiritual de sua constituição como ser histórico, e diz que considerava tudo como refugo, como um adubo, a fim de que ele crescesse e desse fruto no chão da Graça de Deus em Cristo —, por outra via também nos declara acerca da impossibilidade humana de que um homem com sua carga, com seu caldo, com seus vícios mentais, e com seus hábitos arraigados por séculos de transmissão do mesmo espírito, geração após geração, pudesse de si mesmo mudar a própria pele ou tirar as próprias manchas.

Alguém pergunta:

Somente uma Patada Divina no meio do peito é que faz um homem, à semelhança de Paulo, poder mudar?

Sim! O paradigma de ser já era completamente constitutivo do ser de Paulo, somente por uma intervenção traumática poderia ser quebrado como crosta milenar.

Nascido fora de tempo”, diz ele; ou: “nascido de trauma”.

Entretanto, uma vez quebrada a crosta pela via do arrependimento como consciência, então, começa o processo de recondicionar todo o ser ao novo padrão, ao Novo Homem, que se renova segundo Deus.

Ora, Paulo diz que esse é um processo permanente, e que vai de aplicativos grotescos, como: “aquele que roubava não roube mais, aquele que mentia, não minta mais” — aos processos sutis de discernimento diário acerca das ilusões do curso deste mundo, ao investimento intenso e prioritário na busca de uma checagem ininterrupta do nosso próprio olhar, submetendo nossa mente a uma “renovação” constante, a qual garantirá nosso crescimento na direção da instalação do bem como vontade natural do espírito refeito segundo o entendimento dado pelo Evangelho.

É a tal processo que o Novo Testamento chama “santificação”.

ASSIM, santificação é o processo de quebra do velho e adoecido padrão, e que nos leva a adotarmos novos costumes para a vida, até que eles se tornem padrões instalados e manifestos cada vez mais naturalmente como prática do que Jesus chama de bem para a vida.

 Fonte: http://www.caiofabio.net/conteudo.asp?codigo=04172


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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Édipo Rei - paralelo com a fé cristã




O mito de Édipo

1. Introdução
O caminho de volta para Deus não é uma descoberta dos cristãos. Está no coração da humanidade. Para mostrar isso, e também para aprofundar alguns pontos da caminhada de São Francisco, vou contar a história de Édipo, famosa por causa de Freud, que só usou uma parte do mito.

Os mitos são muito importantes em todas as culturas. São histórias que duram muitos séculos e não têm autores conhecidos, porque foram elaborados por um povo e tocam as raízes do humano universal.

A história de Édipo tornou-se imortal quando foi elaborada pela tragédia grega, especialmente por Sófocles, no sec. V antes de Cristo. Os gregos trabalhavam as tragédias para provocar uma catarse (purificação) no povo. Mostravam que o ser humano tem a tendência de se separar de Deus pelo orgulho (hýbris) de suas realizações, mas que isso causa uma cegueira (ate) diante da vida. Então, uma ação dos deuses (ftónos theón) derruba-o para que possa encontrar o caminho da volta. Só assim ele poderá ser livre.

1). A história de Édipo
Édipo nasceu em Tebas e era descendente de seu mítico fundador, Cadmos. Seu avô foi Labdacos (o "coxo") e seu pai foi Laios (o "canhoto").

Laios casou-se com Jocasta e teriam sido felizes como reis de Tebas se não fosse um problema: não conseguiam ter filhos. Por essa razão, muito religiosos, foram consultar o Oráculo de Delfos.

No templo, a pitonisa délfica revelou que teriam um filho dentro de pouco tempo, mas que ele estava destinado a matar o pai e casar-se com a mãe.

Eles se alegraram pelo filho. Quando ele nasceu, Laios lembrou-se do oráculo e mandou os servos matarem o bebê.

Levaram-no para uma a floresta, furaram-lhe os pés e o amarraram de ponta cabeça em uma árvore para ser devorado pelos animais selvagens.

Passaram por ali uns pastores de Corinto e o levaram. Deram-no aos reis de Corinto, que também sofriam por não ter um filho. O rei e a rainha adotaram-no como se fosse seu, e lhe deram o nome de Édipo, que quer dizer "pés furados".

Quando cresceu, Édipo começou a sentir-se diferente dos seus concidadãos e foi consultar o Oráculo de Delfos. Aí soube que estava destinado a matar o próprio pai e a casar-se com a mãe. Horrorizado, decidiu não voltar a Corinto, Pegou o carro e foi para bem longe.

Em uma estrada estreita, nas montanhas, encontrou um carro maior na direção contrária. Tentou desviar-se mas os carros acabaram chocando-se de raspão. O cocheiro do outro carro xingou Édipo que, revoltado, o matou. Então o patrão do cocheiro avançou sobre Édipo, que o matou também. E continuou a viagem.

Chegou a Tebas e encontrou a cidade consternada por dois problemas: o rei tinha morrido e um monstro, a Esfinge, estabelecera-se na porta da cidade propondo um enigma. Como ninguém sabia responder, a Esfinge ia matando um por um. Jocasta tinha oferecido sua mão a quem livrasse a cidade desse monstro.

Édipo foi enfrentar a Esfinge. Era um ser estranho, com corpo de leão, patas de boi, asas de águia e rosto humano. Seu enigma: O que é que tem quatro pés de manhã, dois ao meio dia e três à tarde?

Édipo respondeu que era o homem, porque engatinha quando criança, passa a vida andando sobre dois pés mas, velho, tem que recorrer a uma bengala. A Esfinge matou-se e Édipo, casando-se com Jocasta, tornou-se o rei de Tebas.

Tiveram quatro filhos. Os gêmeos Eteócles e Poliníces, Antígona e Ismênia. Foram felizes durante muitos anos. Mas, depois, uma peste assolou a cidade.

Édipo quis ir consultar Delfos, mas foi aconselhado a chamar Tirésias, um velhinho cego e sábio que vivia em Tebas. Este revelou que a causa era o assassino de Laios, que continuava na cidade. Édipo prometeu prendê-lo e matá-lo, mas o sábio revelou que ele mesmo era o assassino, porque Laios era o dono do carro que ele enfrentara.

Jocasta, envergonhada, suicidou-se. Édipo furou os próprios olhos e renunciou ao trono. Cego, precisou ser guiado por Antígona para ir a Delfos. Aí soube que devia ir a um bosque sagrado, em Colonos, perto de Atenas. Ajudado por Teseu, rei de Atenas, chegou lá. Encontrou um lago, onde tomou banho, e uma caverna, onde penetrou depois de mudar de roupa. Entrou na eternidade.

2). Um paralelo com Francisco
Podemos confrontar a história de São Francisco com a de Édipo em sete interessantes etapas.
Na primeira etapa, tanto Édipo como seus pais lutam para escapar de seu "destino" terrível, mas, sem querer, acabam realizando tudo, ponto por ponto. É aqui que temos de descobrir nossa vocação: para que Deus nos pôs neste mundo? Enquanto lutarmos para escapar dessa vocação, estaremos perdendo tempo: é Deus quem conduz a nossa história. Não fatalmente, mas nos ajudando a compreender o que é melhor para cada um.

São Francisco tenta ser comerciante e cavaleiro mas acaba sendo o santo que Deus queria que ele fosse. Tem até o "sonho" de um chamado, mas custa para entendê-lo. Precisa passar por diversas experiências fundamentais.

Na segunda etapa, Édipo mata o pai: isto é, percebe que tem que se diferenciar de suas origens, tem que ser ele mesmo. Precisa livrar-se de sua "sombra interior", que é uma imagem negativa de si mesmo, muitas vezes identificada na figura paterna pelos meninos e na figura materna pelas meninas. O sentido é que a pessoa precisa descobrir que é diferente, não tem que ser igual a ninguém. Figurativamente, podemos dizer que isso é "matar o pai". Francisco conseguiu libertar-se dos sonhos de Pedro de Bernardone quando entendeu que não tinha que ser nem comerciante nem cavaleiro. Simbolicamente, entregou ao pai o dinheiro e as roupas, dizendo que, a partir daí, podia dizer de verdade: "Pai nosso que estais no céu".

Na terceira etapa, Édipo casou-se com a mãe: isto é, depois de ter conseguido a separação, tornando-se indivíduo independente, percebeu que podia reatar mais maduramente seus laços com as suas origens. Compreendeu que podia continuar a ser diferente, mas podia fazer uma aliança nova e madura com suas raízes, sem medo delas. É desposar a própria terra, o próprio húmus. Francisco, que tinha deixado a cidade de Assis e o mundo, volta a viver nela para ser uma nova presença. Seu "não-lugar" está na missão junto às pessoas do "lugar". Surgiu uma nova forma de vida religiosa.

Na quarta etapa, Édipo resolve o enigma da esfinge. No fundo, descobre que "ser homem" consiste em "tornar-se humano" cada dia. Precisa vencer etapas: sair do quatro, passar para o dois e saber caminhar no três. Francisco vive um período muito fértil em que funda as suas três ordens, anuncia o Reino em uma porção de cidades, deixa inúmeros ensinamentos que nos haveriam de enriquecer durante tantos séculos.

Na quarta etapa, Édipo ouve Tirésias, um sábio cego que lhe revela tudo que estava acontecendo com ele. Podemos dizer que Francisco ouve a sabedoria de Deus em vez de ouvir a multidão dos ministros e o cardeal Hugolino, que queriam que ele pusesse ordem na Ordem.

Na quinta etapa, Édipo, já cego, deixa-se dirigir por sua filha Antígona para ir consultar o oráculo de Delfos; Francisco, já cego, deixa o governo da Ordem e segue apenas a donzela pobreza, que fala em sua interioridade.

Na sexta etapa, Édipo, peregrina para Colonos, obedecendo ao oráculo de Delfos; Francisco, cego, caminhando passo a passo sem saber onde vai chegar, segue "os rastros de Jesus Crucificado".

Na sétima etapa, Édipo chega ao bosque e encontra uma abertura na terra. Despede-se e entra no reino eterno da realidade. Francisco também chega, sem roupa, ao encontro da Irmã Morte e entra para o reino da Santíssima Trindade. Ou se encontra com o "Esposo".

Francisco é um "Pésfurados" tanto porque recebeu as chagas porque foi toda a vida um homem pequenino e ferido no corpo, mas também se identificou com Jesus Crucificado.

3). O Enigma
Nessa história ainda há mais um caso interessante: o enigma. A Esfinge é um ser com corpo de leão, pés de boi, asas de águia e cara de gente (justamente os símbolos dos evangelistas [e das visões de Ezequiel e João no apocalipse: Ezequiel 1.10, Apocalipse 4.7], note bem). A pergunta da esfinge era: O que é que tem quatro pés de manhã, dois ao meiodia e três de tarde?

Édipo responde que é o homem. Mas há mais sentidos: os quatro pés (de boi) falariam de quando estamos presos à terra, numa unidade indiferenciada com a natureza. Os dois pés (de homem) falariam de quando conseguimos "matar o pai" e nos diferenciar como indivíduos independentes (teríamos a força do leão). Os três pés falariam da nossa capacidade de, já independentes, conseguirmos estabelecer um vínculo com o diferente, com o outro, com as origens (teríamos o vôo da águia).

Nosso enigma, para podermos encontrar a Deus, é descobrir o homem, isto é, quem somos nós.

Tenho que descobrir e ser quem eu sou. Tenho que descobrir quem são os outros e me relacionar bem com eles, como filhos e criaturas de Deus.

Só chega a fazer isso quem consegue ser casto: isto é, quem passa a vida dedicado ao encontro com Deus-Esposo.

A plenitude só chega quando, depois de me diferenciar, consigo me relacionar sem perda para mim nem para os outros.

Todas as pessoas podem conseguir, em graus maiores ou menores, diferenciar a si mesmas e se relacionar cada vez melhor com os outros, mas o mais profundo e verdadeiro relacionamento só vem quando alguém se relaciona bem com Deus. Quem está nessa busca, mesmo sem voto, é "casto".

A descobrir nosso verdadeiro eu quando nos abrimos ao abraço de Deus e permitimos que Ele, o Esposo, nos encontre. Costumamos relutar muito para fazer isso, porque sabemos que o eu com que já estamos acostumados não vai resistir. Mas é o único jeito de encontrar o nosso eu de verdade.

Santa Clara [viveu entre os séculos XII e XIII, foi a fundadora da Ordem Franciscana feminina, e se destacou na história da Igreja pela sua piedade e devoção para com Deus e os excluídos da sociedade] tem uma boa proposta para nós. Lembrando, no seu Testamento e na terceira carta a Inês de Praga, que Jesus Cristo é o nosso espelho, aprofunda esse pensamento na quarta carta: propõe que nos olhemos todos os dias, por dentro e por fora, no espelho que é Jesus.

De fato, nosso problema é o relacionamento correto e vital com Deus. Quem perde Deus, perde a liberdade e o amor verdadeiro. Pode até achar que ama, mas na realidade, está possuindo.

Aqui é preciso lembrar que os povos pagãos já sentiam a necessidade de fazer o caminho da volta e tratavam de mover-se para isso por um verdadeiro terror, como nas tragédias gregas. O povo do Antigo Testamento já tinha a esperança dessa volta, prometida por Deus. Mas foi Jesus quem nos trouxe a certeza de volta e do abraço do Pai que nos espera. Jesus restaurou o caminho porque acolheu a vontade do Pai.

É claro que é em Jesus Cristo que podemos ver Deus de verdade. E também é em Jesus Cristo que podemos ver o nosso eu de verdade.

O interessante é que Clara, certamente muito experimentada nesse tipo de contemplação, não demonstra nenhum temor ao se espelhar em Jesus, que é o protótipo. Pelo contrário, diz que devemos ir nos mudando para ficarmos bonitos como ele. Sim, como ele, espelho despojado e simples no presépio, como ele, espelho de pobreza e humildade durante toda a sua vida. Como ele, espelho de amor quando foi despido e crucificado.

Quem se coloca diante de Cristo e enfrenta a escuridão interior já está no caminho de volta, porque o olhar de Cristo cura a nossa falsidade. Como disse São Paulo: "Quem está em Cristo é uma nova criatura. A ordem antiga já passou; agora estamos na nova" (2Cor 5,17).

Sem ficar cegos, podemos olhar o Cristo novo que está nascendo em nós.

4). Pontos para reflexão
  1. Anote as principais características pelas quais você se definiria. Principalmente os pontos positivos, mas não deixe de lado nem os negativos. Como é que você se apresenta? Você se vê como uma pessoa amável?
  2. Já desconfiou, às vezes, que os outros o vêem diferentemente? Como é que o vêem as pessoas que menos gostam de você? E as que mais gostam? Quando você percebe que não acreditam no que você acha que é, qual tem sido sua atitude? O que você faz quando os outros acham que você é melhor do que você mesmo se reconhece?
  3. O que você pode dizer da sua coragem para fechar os olhos ao mundo de fora e se enxergar por dentro? Você consegue reconhecer a escuridão interior? Consegue reconhecer que Deus está lá no fundo dessa escuridão? Consegue pedir a Ele, como São Francisco, que "ilumine as trevas do seu coração"?
  4. Será que você está realmente empenhado em um caminho de volta? Quais são as suas atitudes que demonstram isso? Que práticas você já estabeleceu e já mudou em sua vida para trilhar com decisão uma volta constante para Deus? Até que ponto pode dizer que sua vida de oração é um caminho de volta?
 Fonte: http://www.franciscanos.net/portugues/livres5.htm

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Cálice













Cálice
Chico Buarque

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça






terça-feira, 13 de setembro de 2011

A vingança de Balaio

Balaiada

A Balaiada foi uma importante revolta ocorrida no Maranha entre 1838 e 1841, iniciando no Período Regencial e terminando no governo de D. Pedro II. Uma dos líderes do movimento era uma fabricante de balaios, Manuel Francisco dos Anjos Ferreira (daí o nome balaiada). Quando eu ainda estudava na faculdade, em um seminário, um colega apresentou um poema sobre o assunto que tem, além de fundamentação histórica, um profundo toque artístico e humano.



A vingança de Balaio

Nos tempos da Regência
No Nordeste brasileiro 
Caminhava triste figura 
Entre o sonho e desespero

Tá aqui a minha história
Artesão da região 
Do sertão do Maranhão 
Manuel Francisco Ferreira dos Anjos

Pelas bandas de Coroatá, me chamavam de Balaio
Mas só lhes peço uma coisa antes de começá: 
Não me olhem de soslaio 
Nem desandem a chorá

Não vivia de agregado
Nem tão pouco era empregado 
De herança de meu pai 
Um terreno acatingado

Onde plantava o que comia
E comia o que plantava 
Quatro bucho pra encher 
Era pouco o que sobrava

A fartura não havia
Ou melhor, havia sim! 
Fartava carne, fartava fruta, 
Fartava água até aipim.

Fazia com carinho
Cesta de palha e peneira 
Na oficina minhas filha 
Era elas costureira

Eu vendia os balaio
De domingo lá na feira 
Que montavam no terreiro 
Infestado de poeira

Eu vos digo meus amigos
Tudo, tudo é forte no sertão 
Grande e forte é a lei 
Da peixeira e do facão

Forte é o sertanejo
Que ninguém sabe seu nome 
Forte seca, forte sede 
Forte sol e forte fome

Na venda do Bastião
Onde ia a tardezinha 
Trocar por outras coisas 
Minhas sacas de farinha

Proseava horas sobre
As últimas de Coroatá 
Até que a patroa 
Acenava  pra volta.

Numa tarde ensolarada
Olhando ao longe vejo 
Tropas legalistas 
Cruzarem o vilarejo

Sujeitos desalmados
E cheios de maldade 
Voltei esbaforido 
Mesmo assim já era tarde
Minha mulher tremia
No chão chorando me contava 
O causo que a pouco 
Infelizmente se passava
Minha raiva e minha ira
Eles tinha despertado 
Minhas filhas tão amadas 
Eles tinham desonrado
Carreguei comigo
Uma sede de vingança 
Vida simples e tranqüila 
Ficaram na lembrança

Aperto no peito, nó na garganta
E dor no coração 
Perseguir aqueles cabras 
Por todo Maranhão

Fui pedaço de vida em fim de feira*
Ave bala que tem mira certeira* 
Vingança! Oh palavra incandescente! 
Sou Balaio, sozinho um impotente

Com amigos, conhecidos, muita gente
Sou a presa afiada da serpente* 
Que cochila nos pés do cangaceiro* 
Essa noite eu retalho o mundo inteiro!

Agora quero justiça
E adentro a Balaiada 
Que foi, com tal nome 
Por minha causa batizada

Minha morte veio antes
Da revolta terminada 
Porém minha vingança 
Foi em parte executada

Nas veredas estreitas do universo
Matei muitos legalistas eu confesso 
Mas no meio dos legais eu matei gente 
O mesmo erro, era gente inocente!

(*Trechos de cantigas e literatura de cordel popular presentes na cultura nordestina).

Autor: Pedro Jr. Peres.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Pensar o ser humano depois de Auschwitz

Portão principal de Auschwitz I, onde se lê a frase "Arbeit macht frei" ("O trabalho liberta").



Pensar o ser humano depois de Auschwitz
Leonardo Boff

Recordamos neste ano os 65 anos do Holocausto de judeus perpretado pelo nazismo de Hitler e de Himmler. É terrificante a inumanidade mostrada nos campos de extermínio, especialmente, em Auschwitz na Polônia. A questão chegou a abalar a fé de judeus e de cristãos que se perguntaram: como pensar Deus depois de Auschwitz? Até hoje, as respostas seja de Hans Jonas do lado judeu, seja de J.B.Metz e de J. Moltmann do lado cristão, são insuficientes. A questão é ainda mais radical: Com pensar o ser humano depois de Auschwitz?

É certo que o inumando pertence ao humano. Mas quanto de inumanidade cabe dentro da humanidade? Houve um projeto concebido pensadamente e sem qualquer escrúpulo de redesenhar a humanidade. No comando devia estar a raça ariana-germânica, algumas seriam colocadas na segunda e na terceira categoria e outras, feitas escravas ou simplesmente exterminadas. Nas palavras de seu formulador, Himmler, em 4 de outubro de 1943: "Essa é uma página de fama de nossa história que se escreveu e que jamais se escreverá". O nacionalsocialismo de Hitler tinha a clara consciência da inversão total dos valores. O que seria crime se transformou para ele em virtude e glória. Aqui se revelam traços do Apocalipse e do Anti-Cristo.

O livro mais perturbador que li em toda minha vida e que não acabo nunca de digerir se chama: "Comandante em Auschwitz: notas autobiográficas de Rudolf Höss"(1958). Durante os 10 meses em que ficou preso e interrogado pelas autoridades polonesas em Cracóvia entre 1946-1947 e finalmente sentenciado à morte, Höss teve tempo de escrever com extrema exatidão e detalhes como enviou cerca de dois milhões de judeus às câmaras de gás. Ai se montou uma fábrica de produção diária de milhares de cadáveres que assustava aos próprios executores. Era a "banalidade da morte" de que falava Hannah Arendt.

Mas o que mais assusta é seu perfil humano. Não imaginemos que unia o extermínio em massa aos sentimentos de perversidade, sadismo diabólico e pura brutalidade. Ao contrário, era carinhoso com a mulher e filhos, consciencioso, amigo da natureza, enfim, um pequenoburgues normal. No final, antes de morrer, escreveu: "A opinião pública pode pensar que sou uma béstia sedenta de sangue, um sádico perverso e um assassino de milhões. Mas ela nunca vai entender que esse comandante tinha um coração e que ele não era mau".Quanto mais inconsciente, mais perverso é o mal.

Eis o que é perturbador: como pode tanta inumanidade conviver com a humanidade? Não sei. Suspeito que aqui entra a força da ideologia e a total submissão ao chefe. A pessoa Höss se identificou com o comandante e o comandante com a pessoa. A pessoa era nazista no corpo e na alma e radicalmente fiel ao chefe. Recebeu a ordem do "Fuhrer" de exterminar os judeus, então não se deve sequer pensar: vamos exterminá-los (der Führer befiehl, wir folgen). Confessa que nunca se questionou porque "o chefe sempre tem razão". Uma leve dúvida era sentida como traição a Hitler.

Mas o mal também tem limites e Höss os sentiu em sua própria pele. Sempre resta algo de humanidade. Ele mesmo conta: duas crianças estavam mergulhadas em seu brinquedo. Sua mãe era empurrada para dentro da câmara de gás. As crianças foram forçadas a irem também. "O olhar suplicante da mãe, pedindo misericórdia para aqueles inocentes"- comenta Höss - nunca mais esquecerei". Fez um gesto brusco e os policiais os jogaram na câmara de gás. Mas confessa que muitos dos executores não aguentavam tanta inumanidade e se suicidavam. Ele ficava frio e cruel.

Estamos diante de um fundamentalismo extremo que se expressa por sistemas totalitários e de obediência cega, seja políticos, religiosos ou ideológicos. A consequência é a produção da morte dos outros.

Este risco nos cerca pois demo-nos hoje os meios de nos autodestruir, de desiquilibrar o sistema Terra e de liquidar, em grande parte, a vida. Só potenciando o humano com aquilo que nos faz humanos como o amor e a compaixão podemos limitar a nossa inumanidade.