O que é ser judeu?
Jaime Pinsky
Mesmo para aqueles que acham que judaísmo é apenas uma religião, o assunto provoca divergências. Não é por acaso que se conta a história do náufrago judeu que, após dez anos desaparecido, é encontrado numa ilha deserta por um navio que por lá passava. O capitão encantou-se com as estratégias de sobrevivência dele, que incluíam a construção de uma casa bastante sólida, a confecção de redes de pesca e arpões e, para sua surpresa, duas sinagogas. “Duas sinagogas?”, perguntou o capitão. “Para que construir duas sinagogas se você está sozinho na ilha?” “Muito simples”, respondeu o náufrago. “Naquela, eu rezo todos os sábados. Já na outra, eu não entro de jeito nenhum.”
Assim são os judeus religiosos: uns, ortodoxos; outros, conservadores; os terceiros, liberais; e ainda os reformistas – além de várias outras denominações. A convivência nem sempre é pacífica, mas a ausência de um poder central e de uma função sagrada para os rabinos (eles não falam em nome de Deus, não dão sacramentos, e qualquer ato religioso judaico pode ser realizado sem sua presença) faz com que as diferentes comunidades contratem diferentes tipos de rabino. Há, inclusive, rabinos gays e “rabinas”. Seu papel mais importante é adaptar leis milenares às práticas de cada grupo. É por isso que uma comunidade tão pequena como a brasileira – menos de 0,1% da população do país – tem tantas sinagogas, organizações e porta-vozes. É muito cacique para pouco índio.
Mas limitar o judaísmo à identidade religiosa não responde a todas as situações. É possível dizer que Philip Roth não seja um escritor judeu, que Woody Allen não é um cineasta judeu, que Marc Chagall não foi um pintor judeu, que Sigmund Freud não tenha sido judeu? O judaísmo está presente nas obras de todos esses gênios.
Uma parcela significativa da juventude israelense, como protesto pela inexistência do casamento civil no Estado de Israel, recusa-se a se casar na sinagoga e viaja até Chipre para oficializar sua união. Seriam esses jovens não-judeus?
Não há uma única forma de identificar os judeus. Eles não permaneceram identificados como tais apesar da história, mas por causa da história. Não fossem necessários, teriam desaparecido como povo. O grande segredo de sua permanência é que eles não permaneceram, mudaram. Nada mais distante de um judeu do gueto do que um outro que transcenda a idéia da nação. Quando, depois de muitos e muitos séculos, os judeus obtiveram sua emancipação como cidadãos – isso tudo só após a Revolução Francesa –, muitos saíram da cidadezinha para o mundo, tocando música, escrevendo, pintando, marcando, enfim, sua presença no mundo a partir do início do século 20.
Isso, contudo, só ocorreu para uma pequena fração de judeus. A maioria continuava nas aldeias e nos bairros pobres das cidades da Europa Oriental. E é nesses ambientes que surge o nacionalismo judaico. Deve-se localizar as raízes da identidade nacional judaica no século 20, na Europa centro-oriental, e atribuí-la a três fatores complementares: o esgotamento das formas de existência judaica nas cidadezinhas e nos guetos das cidades da Polônia e região; a “primavera das nações”, então em curso, que se apresentava como uma panacéia universal, remédio destinado a superar pobreza e perseguições (não foi, como sabemos); e o profundo sentimento de identidade cultural.
Embora a colonização moderna da Palestina pelos judeus tenha se iniciado no final do século 19, ela ainda não era muito significativa – em termos quantitativos – até a década de 1930. Mas a ascensão de Hitler ao poder e a “solução final” concebida e executada pelos nazistas (com o assassinato sistemático da maioria da população judaica européia) fez com que grande parte dos judeus não percebesse outro caminho que não a “reconstrução” de um Estado que pudesse funcionar como refúgio a todos os judeus do mundo que se sentissem perseguidos. Essa é a história de Israel.
Isso faz com que todos os judeus sejam israelenses e que todos os israelenses sejam judeus? Claro que não. Em Israel, existe um significativo número de israelenses árabes, muçulmanos ou cristãos. E bem menos da metade da populacão judaica do mundo vive em Israel, por qualquer critério que se queira identificar esses judeus.
Há sempre quem olhe o judeu de forma preconceituosa, francamente negativa ou falsamente positiva, mas nem por isso menos discriminatória. Há quem diga que existe um judaísmo gastronômico, outro ufanista (esgrimindo com violinistas, escritores e cientistas judeus que ganharam o Prêmio Nobel). Há mesmo quem ainda acredite que os judeus sejam o povo eleito. Tenho, contudo, a convicção de que sua experiência como discriminados habilitou os judeus a lutar contra qualquer discriminação, e o período da vida na aldeia isolada ou nos guetos desenvolveu em muitos judeus o ódio ao etnocentrismo, ao horizonte limitado. Há um judaísmo universal e ele pode ser praticado.
Jaime Pinsky é doutor e livre-docente em História pela USP e professor titular pela Unicamp. É autor de mais de 20 livros, entre os quais Origens do Nacionalismo Judaico e História da Cidadania, e diretor editorial da Editora Contexto.
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