A
insensatez dos sensatos e a força social da utopia cristã hoje
Jung Mo Sung
Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito
da Univ. Metodista de S. Paulo.
Um homem sensato se
revolta com a natureza das coisas? É claro que não, pois uma das
características da sensatez é, precisamente, ter juízo e equilíbrio para não ir
contra a realidade como ela é. Revoltar-se contra a natureza das coisas e a
própria natureza como tal é sinal de imaturidade ou de insensatez. Como a
sociedade precisa mais de pessoas sensatas do que insensatas, a conclusão seria
que o melhor para vida social é menos rebelião contra a natureza da vida
social. Conclusão essa que é compartilhada pela maioria da população.
Ao mesmo tempo,
muitas pessoas diriam que não é sensato aceitar a realidade social e ambiental
em que vivemos. A grande desigualdade social, as injustiças nas relações
econômicas e sociais e os problemas ambientais são sinais de que as coisas não
estão bem.
Ora, o que é, então,
ser sensato nos dias de hoje? Aceitar as "regras do jogo”, a
"natureza das coisas” da vida social, ou se rebelar? Isso depende do que
entendemos por "natureza das coisas”.
Na Antiguidade, os
povos acreditavam que a vida como eles conheciam era fruto do destino ou da
vontade onipotente dos deuses. Não havia alternativa, por isso ninguém discutia
a questão ética, da injustiça ou justiça, sobre a vida social ou familiar.
Quando a vida que vivemos é compreendida como sendo conforme a vontade divina
ou dos poderes espirituais da natureza, a discussão sobre injustiça ou justiça
não faz sentido. Hoje, por ex., ninguém discute sobre a justiça ou injustiça da
"lei da gravidade” porque é uma "lei natural”. Assim também era no
passado distante sobre o papel das mulheres na sociedade e na família ou a fome
e sofrimento dos pobres e o poder e a riqueza dos reis.
É só quando grupos de
pessoas oprimidas conseguem imaginar um mundo diferente do que conhecem, um
mundo onde seus sofrimentos não mais existem, é que a sua realidade passa a ser
percebida como social e não mais como natural ou divina. Sem essa imaginação
utópica (Franz Hinkelammert), a realidade social não pode ser criticada de modo
radical. Geralmente, no passado e no presente, os pobres expressam essa
imaginação através de linguagens religiosas por dois motivos básicos. Primeiro,
porque falam de um mundo que ainda não veem, precisam de imagens e símbolos
típicos da linguagem religiosa; segundo, porque percebem que, sendo pobres e
fracos, precisam do poder ou ajuda de Deus para realizar esse sonho. Assim,
eles criticam a religião e deus dominantes e expressam a fé em um novo Deus.
Se Deus que descobrem
não está de acordo com o mundo que os sensatos dizem ser "natural” ou
"divino”, qual a razão, a causa, da situação que agora é percebida como
injusta? A resposta não pode mais ser "leis da natureza” ou vontade
divina. Só pode ser responsabilidade humana. Em linguagem religiosa: só pode
ser fruto do pecado. Só na medida em que a realidade social é vista como fruto
do pecado, ou da injustiça, é que ela pode ser transformada profundamente. E
esse juízo só é possível a partir da imaginação utópica de um mundo sem
injustiças e mortes antes do tempo. Reino de Deus foi o nome dado por Jesus
para essa "imaginação utópica”; imaginação essa que foi entendida, pela
fé, como "visão” dada pelo Espírito.
Hoje, quando a
expansão do "império capitalista global” é vista como "evolução
natural”, o cristianismo ainda tem uma contribuição importante a dar enquanto
religião: anunciar o Reino de Deus (a imaginação utópica) que permite ver como
o império atual é fruto e expressão do pecado! A força social do cristianismo
não está no seu discurso meramente ético, mas no seu discurso religioso capaz
de desmascarar a insensatez das pessoas sensatas do mundo; desmascarar o pecado
do mundo a partir da fé em Deus que deseja a vida abundante para todas e todos.
[Jung Mo Sung, autor (com Hugo Assmann) de "Deus em nós: o reinado que
acontece no amor solidário aos pobres”. Twitter: @jungmosung].
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